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Quero me tornar independente, aproveitando o dia da independência, de uma ideiazinha chata que vem me intrigando. Talvez ter aquela opinião formada sobre tudo do que ser uma velha metamorfose ambulante. Uma opinião suspensa como uma nuvem multicor e bela, em que se pode desenhar com a imaginação formas variadas conforme o gosto.
Imagine você, Santa Maria, que, no outro dia, ou melhor, na outra noite, um antigo colega de escola, ao me rever depois de anos, veio logo me perguntando “de que lado eu estava”, sexualmente falando. Ontem, no mesmo bar, um outro colega de copo, me parabenizou porque eu “era assumido”. “É isso aí, não tem que esconder nada de ninguém.”. Acumulei essas duas observações incômodas na memória, para que pudesse escrever a respeito apenas depois que encontrasse uma contrapartida.
E foi ontem mesmo que o Dioniso, jovem rapaz, muito trigueiro, bastante sensual, o terror das mulheres (e das bibas!), me deu essa contrapartida, ao mesmo tempo, me tranquilizando, pois me senti menos peixe fora d’água, e me dando um aval para trazer para o texto um papo tão chato e batido como este.
O Dioniso, depois de dias, ou noites, que nos víamos sem que nos falássemos, disse que “cortava dos dois lados”. Pediu mil segredos a mim e a Guilherme. Nós juramos pelo que havia de mais sagrado que não diríamos a ninguém “que Dioniso cortava dos dois lados”, pois eu e Guilherme éramos dois túmulos.
Longe também de vir com a idéia de que, “sexualmente falando”, não podemos ter limites, de que somos completamente livres – tudo balela. Nada disso. Mas para mim é a coisa mais estranha quando, de repente ou do “nada”, alguém me pergunta uma coisa muito íntima assim cuja resposta sempre fugidia me remeta àquela velha metamorfose ambulante, que, aliás, elogiara o Raul.
Ocorre que a esta altura do campeonato, eu não tenho a menor idéia de que lado eu estou. No meu modo de pensar, os gêneros sexuais não podem ser tratados como times de várzea. Somos, sempre fomos e sempre seremos, nós da raça humana, ou homem ou mulher, salvo os casos raros de hermafroditismo, androginia, etc., casos acidentais da natureza humana, ou no caso atual dos transexuais, que, de resto, ainda não se encontram um em cada bar.
Fico exasperado quando alguém que não renova o repertório de cantadas, vem sugerindo, por conta da própria estupidez, que somos casos à parte, como que querendo segregar e limitar mais do que já somos naturalmente segregados e limitados.
Me irrita também esse negócio de “assumido”. Que assumido? Quem disse ao cara que eu sou assumido? E se assumi, assumi o quê? Se isso levasse o cara ou a mina a conhecer as minhas preferências sexuais, assim como conhecem por aí os meus gostos musicais ou cinematográficos, ainda valeria a pena a observação. Mas se é só para esvaziar o papo, porque é de uma grosseria sem tamanho, sobretudo numa primeira conversa, o melhor mesmo é ficar quieto, ao invés de pôr em risco o que poderia ser o início de uma grande amizade.

Depois que o feminismo politizou o sexo em “benefício da civilização”, o povo confundiu o gosto ou as tendências sexuais com classificações ou tribos sexuais, na tentativa aristotélica de defini-las (ou classificá-las) tão bem como há anos vimos definindo os dois gêneros indispensáveis para a manutenção da humanidade, ou seja, o homem e a mulher.

Esses dois, cada um com a sua pureza e característica próprias, coitados, que já vinham lutando duro, na história, para se entenderem melhor, tiveram de interromper este processo onírico e apaixonante e voltar os olhos para uma “criatura” extraordinária (ou extraterrestre), o homossexual, que aparece, de repente, pegando o bonde da criação andando, e que, só porque teve lá, na infância e na adolescência, uns projetinhos de desejo pelo mesmo sexo, umas fantasias benfazejas para uma boa masturbação e umas frustrações com o sexo oposto, achava que não teria estrutura psíquica para enfrentar o belo caminho de conhecer o outro (sexo) cada vez melhor e constituir família, num exemplo menos complexo, mais natural, ou menos antinatural, de contribuição social.
Para se defenderem, se preservarem e fazerem jus à criação e à procriação, aliás, prescrita e bem prescrita na Bíblia Judaica, e até mesmo na Cristã, o homem e a mulher ocidentais entraram no jogo das classificações, intitulando-se heterossexuais, embora também pudessem “ter passado pela fase da fantasia com o mesmo sexo”, o que deveria ser rigidamente ocultado, caso contrário seriam classificados como homossexuais e, por isso, excluídos pela grande maioria de homens e mulheres supostamente “normais”.
Assim, o terceiro sexo surge, muito mal-explicado, como que se evadindo de relações frustradas e renunciando a outras que “poderiam” ter um fim semelhante; num desalento que ilusoriamente se satisfaz com prazeres efêmeros, em detrimento da busca constante pela felicidade, que se verifica e perdura nas gerações de uma família, uma vez que felicidade e eternidade (ou imortalidade) estão bastante vinculadas, ao contrário do prazer ou da alegria.
Conheço alguns casais de pai e mãe razoavelmente felizes ou em busca da felicidade, mas nunca conheci um casal gay (e não conheço poucos, considerando suas proporções) tipicamente feliz, mesmo porque, apesar do projeto (engavetado) no congresso, não podem nem mesmo casar oficialmente, com comunhão de bens como aqueles, a despeito dos dois milênios passados do “crescei e multiplicai-vos” dos evangelhos.
Talvez, essa mesma renúncia gay à felicidade (ou essa mesma substituição da felicidade pela alegria) justifique o silêncio de Nietzsche em relação à homossexualidade em toda sua obra, a qual apenas faz menção do assunto num breve aforismo (259) de Humano Demasiado Humano. É possível que ele tenha receado mexer numa ferida milenar que teria dado muito pano pra manga. Quando não, teria até que incluir os homossexuais nos grupos de rebanho que ele tanto condenava, dos estropiados dignos de compaixão platônico-socrático-cristã, de modo que até mesmo os nazistas, ao deturparem sua filosofia, podem ter entendido assim esse silêncio.
A politização do sexo (e não só!) culminou com as limitações famigeradas: se de um lado o judaísmo e o cristianismo condenam as relações homossexuais, em favor da manutenção da espécie humana, por outro lado, os grupos de segregação, sob o signo de “visibilidade”, em troca de direitos cidadãos, condenam as relações heterossexuais. Ou seja, se tivéssemos que aderir aos primeiros ou às segundas, depararíamos inevitavelmente com a mesma pedra no meio do caminho: uma proibição. A própria libido é proibida.
Enfim, conversando com Guilherme sobre o assunto, ele me disse que talvez a minha busca pela correção ao falar e ao agir e o modo contemplativo de olhar tenha levado alguns perdidos do bar a me considerarem “assumido”. É possível. Já li em Sírio Possenti que, no Brasil, a correção na linguagem é um traço feminino; mas "esta terra ainda vai cumprir seu ideal".

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