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Pondere, Maria Santa, se poderia haver momento mais belo do que este: eu aqui, sentado no meu “trono”, diante do ve-lho companheiro metálico computador, num espaço que no pas-sado teria sido o meu quarto de dormir, de onde posso ouvir o CD de Oswaldo Montenegro, cantando “ao vivo” Lamentos (de Pixinguinha e Vinícius de Morais), que depois se torna Trocando em miúdos, por sua vez, avançando e se transformando em Samba do grande amor, ambas as últimas composições de Chico Buarque – a primeira delas em parceria com Francis Hime.
Sinto-me um grande medíocre colocando em repeat essa faixa. Parece um ultraje ao requinte – que requinte não se repete. Mas, enfim, não me contento em ouvir uma só vez a obra-prima, sobretudo Trocando em miúdos, que me transporta para a cena dra-mática de despedida de Teresa Raquel, ex-noiva do tecelão da alma, que ora vos tece.
De quando em quando, vem Chiquinha amada, descre-vendo, com detalhes dignos da melhor literatura, a festa de aniversário de Nossa Senhora de Fátima: a coroação da Virgem, as comidas quermessianas prenunciando São João, o vigor do povo, o coro na igreja, os fogos no céu, etc.
Percebe o cenário? Estou melancolicamente feliz. Isto sim é que é circunstância a se deitar ao eterno retorno, e não o contrário, que seria estar felizmente melancólico.
Entretanto, essa descrição inflamada não é exatamente o que me trouxe ao tear da alma. O tear da alma é soberano e atroz: um positivista de Comte: é preciso provar ser digno dele, caso contrário o que seria tecido viscoso se torna trapo.
Modéstia à parte, neste nobre momento, em que só posso aderir a mim mesmo, ao escrever, sinto-me o próprio bicho-da-seda. Mal-vestida a alma que não puder trajar do pano que venho tecer. Vim para falar dos postulados magníficos de Flávio Gikovate, psicanalista que fala no Café Filosófico da TV Cultura.
Apesar da disparidade nas sentimentalidades do momen-to, isto é, entre o que quero dizer e as narrações tão católicas de Chiquinha, a música que juntos ouvimos, a lembrança dum amor do passado, Chiquinha, Oswaldo e Teresa hão de me perdoar no dia do Juízo Final, se é que esse dia virá.
Todo homem corajoso, simpático, discernido e auto-suficiente que ouço ou leio põe-me em contato com a memória de meu senhor meu pai, para quem tudo era necessário e nada era suficiente.
Flávio Gikovate, a meu ver, pode bem ostentar todas es-sas quatro virtudes do homem do futuro, e por isso faço aqui, de memória, uma simples paráfrase de seu discurso tão eloquente, na televisão:
Eis que o melhor alento das novas gerações é o “ficar” entre os jovens. Na nossa adolescência, a aproximação dos jovens sedentos de amores era tão tumultuada e difícil de se concretizar que acabou gerando muito sofrimento, formando relacionamentos fracassados, uma cultura cada vez mais machista, mulheres cada vez mais insatisfeitas, homens cada vez mais inseguros.
Nós não podíamos beijar nem ser beijados por diversas razões: vergonha, proibição, separação de gêneros, resultante da guerra dos sexos, ou vice-versa, desconhecimento do outro, com-plexos, homossexualidade latente ou patente.
Os meninos mais delicados eram chamados de “bichas”, o que fazia com que se afastassem mais ainda das meninas ao ve-rem os mais “machões” saindo na vantagem entre elas, por conta da agressividade.

A agressividade – esta bomba sexual dos tempos – ex-plodiu nos rapazes, como instrumento propulsor do “tesão”, resultado do desejo visual, segundo nossa opinião, atributo exclusivo dos varões. As moças, por não desejarem visualmente, mostravam-se indiferentes em relação a eles.
Os rapazes, desejando e não se vendo desejados, sentiam-se frustrados e inferiores. Donde ter sido importante o advento do simples ficar. Esse contorno da situação tornou os jovens mais amistosos em relação ao sexo oposto, diminuindo muito o conflito entre os dois sexos.

No entanto, ao perceberem essa fraqueza na maioria dos rapazes, as mulheres passaram a usar a indiferença, relacionada à ausência de desejo visual, como uma fonte de pirraça ou humilha-ção e principiaram expondo mais os seus corpos e com isso – en-tre outras causas – subiram ao poder.
Triste foi a hora em que os machões (homens e mulhe-res) descobriram que o sexo e a agressividade são irmãos gêmeos. Afinal, se entre uma briga e outra, os orgasmos eram mais inten-sos, o ideal era ter sempre na manga uma carta, ou seja, uma coisinha suja para irritar o outro e depois cair na cama e só sair verdadeiramente saciados.
A artimanha tornou-se um vício, e de vício foi consagra-da pelo uso como virtude. Daí se o menino dissesse ao pai que queria fazer um curso de pintura, o pai o punha nas aulas de judô.
Porém, ergueu-se entre os casais a percepção dum grande problema: precisavam amar e transar, e se o sexo mantinha comércio com a agressividade, sexo e amor eram fenômenos distintos. Pois o que move o amor é o encantamento que surge das semelhanças dos amantes.
Os amantes pareciam estar amando “errado”, pois para o sexo, suscitavam as diferenças entre eles, as quais irritavam, causando o famigerado tesão.
Pobres amantes. Como amar e transar simultaneamente se para cada uma dessas manifestações de vida o que move são impulsos opostos? Eis a questão. Uma incógnita.
Contudo, a dúvida também gera padrões. Dessa incógnita surgiram os modelos fechados de casais que se dividiam numa dupla muito conhecida: O(A) egoísta e O(A) generoso(a).
O generoso mais dava do que recebia. O egoísta recebia mais do que dava. O egoísta, impaciente, irritado, dependente, chorão, reclamão, agitado, etc., encantava o generoso. O generoso, por compaixão e por desejo de glória, alimentava e reforçava o jeito do egoísta.
Depois de anos nessa novela interminável e sem fruto, geralmente por decisão do generoso que sucumbia, a solução era o divórcio. E ele se dizia vítima, dava uma de coitadinho e lesado, mas, pensando bem, era tão culpado pelo fracasso no matrimônio como o egoísta.
Imaginemos, pois, nesse contexto, sendo educada uma criança, que precisasse decidir depressa sobre como seria quando crescesse – se como a mãe ou como o pai. Afora o caso de ser o segundo filho, que ao nascer já teria vindo com o futuro escolhido, considerada a opção do irmão mais velho. Que saga enfim.
Chegado aos vinte e sete, eu me pergunto como isso se realizou na minha formação atribulada de sétimo filho que aguar-dava o oitavo. Creio que eu e meus irmãos revezávamos – um era generoso e outro egoísta; seguindo este surto cretino de lógica, estou fadado à generosidade. Preciso de uma egoísta.
No entanto, finalmente, Flávio Gikovate garante haver uma saída de mestre para essa situação desoladora: reunidos os generosos do mundo, o próprio relacionamento “amoroso” terá o cenário do grande paraíso prometido, em que ambos dão e rece-bem de forma equilibrada, por meio de uma troca justa, amando e transando e seguindo a canção.
Inocência à parte, a ordem agora não é mais procurar a metade que nos falta. Esse vazio que se sente em si pode bem ser uma mera ilusão – o ideal é a aproximação de dois inteiros. É ou não é motivo de muita empolgação o discernimento de Gikovate?
Voltando a mim aqui a tecer, ao chegar em casa e encontrar Chiquinha, eu viera de ler um poema de três páginas ao meu amigo poeta, Guilherme Cruz, que me desafiara ao considerar insosso um outro poema meu.
Esse longo poema que li fora inspirado justamente no café filosófico de Gikovate e se chama A Gênese Particular, a ele dedicado. O Guilherme garantiu que nunca ouvira nada tão perfeito em poesia. O poema será incluído na minha coletânea poética de 2004: Amor Grátis.
Pois bem, Maria, Maria, agora passa de duas da madrugada, Chiquinha já está sonhando com as cores dos fogos de artifício, assim como Teresa distante, com um novo amor, mas juro para você: com o repeat no som, Oswaldo Montenegro está cantando até agora as mesmas canções: uma generosa e outra egoísta.

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