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Um aquecimentozinho para o quanto me aguarda nos livros de ler. Um está tímido, com os olhos entreabertos na estante da biblioteca, convidando sempre. E eu digo com a petulância e a boa consciência de projeto de cientista humano: Espera! Só quando eu chegar no drama que tem a ver com você. O nome dele é Simetria: rigor e imaginação. Que será que tanto diz com fumos do sul? O autor, Rohde, fala de Porto Alegre. De muitas coisas, como li no índice, mas também da simetria.
O dedo que fere as letras j, u, m, h, y e n deste e de muitos outros textos está enforcado por um anel gasto, barato, talvez até mesmo de algum camelô da República, que nem sonha em se lembrar do meu rosto – torto e prateado. Mas o simbolozinho oriental antigo, antiquíssimo, permanece reluzindo o negro à minha esquerda e o branco à minha direita e os pingos traiçoeiros, cada qual do lado oposto, nunca fariam parte do todo a que pertencem pela própria natureza. Quando comprei este anel, eu não tinha a menor idéia de que alguns anos depois eu estaria por enfrentar o desafio de meditar sobre o oposto do símbolo que ele ostenta: a simetria.
Se o pensamento oriental é caracterizado pela presença da assimetria, pelo que apenas a partir da qual é possível chegar à verdade, é razoável pensar que o ocidental é ou pretende ser simétrico. Com isto presumo que seja ou tenda a ser artificial, man-made, antinatural, que na natureza não há simetria.
O que me tirou da cama insone foram esses “raciocínios” somados à idéia central dos ensaios de Oscar Wilde, os quais terminei de traduzir anteontem. Fiquei contrapondo tantas vezes, na revisão, a Arte e a Vida e Natureza que a coisa colou. Mas quando algo cola no meu pensamento eu 
sempre sinto a necessidade de transformá-lo, de superá-lo – num afã ilusório de estar indo adiante. E se não fosse isto eu não estaria aqui, já no quarto parágrafo desta escrevinhação.

Juntei essa oposição simétrica wildiana com a outra, talvez dela resultante, lusitana, de Eça, ou “brasilaira”, de Machado – Romantismo x Realismo; Machado mais ainda, que contradisse a pirraça do meu anel e saiu dum lado e foi para o extremo oposto. Não deve ter resistido à sedução e ao frisson do realismo, depois de integrar a escola romântica. O Machado é a bolinha do yin-yang.

Mas diz a personagem num dos ensaios supracitados que o realismo torna as pessoas feias, ainda que proporcione saúde ao povo. Com isto deve ter querido dizer que o romantismo as torna belas, e indo mais além, viajando mesmo, ainda que doentes.
Sob a luz do provérbio, aliás, o único que não esqueci das minhas aulas de latim, mens sana in corpore sano, fui criado para pensar que o extremo da doença é a loucura. E fiquei imaginando – claro: considerando a hipótese do Romantismo sendo engolido pelo imperativo categórico – um mundo repleto de Giseles Bünchens e Davids Beckhams praticando coprofagia e rasgando dinheiro. Ou, do contrário, caso o imperativo engolisse o Realismo e todos construíssemos verdadeiros paraísos arquitetônicos tecno-filosófico-científicos, não tivéssemos dúvida de nada, não adoecêssemos e nem mesmo morrêssemos, mas fôssemos os verdadeiros Corcundas de Notre Dame.
Daí imaginei a célebre e inesquecível Nise da Silveira. Talvez, folheando teorias estéticas semelhantes às de Wilde e sabendo que o que urgia na profissão da Nise era o extremo da saúde e não o da beleza, ela decidiu mudar de caminho e passou a recomendar aos seus pupilos que trocassem os manuais psiquiátricos por Machado. Taí uma mulher que contraria muito bem a teoria nietzschiana de que as mulheres não foram feitas para pensar.
Mas, meu pai, a realidade é tão excessiva para um escritor realista, que o coitado perderia os deleites da saúde de tanto buscar o saber e escarafunchar todas as gavetas do mundo. Ao passo que a vontade de criar é tão intensa para um escritor romântico que o pobre perderia o sentido da beleza de tanto imaginar e vasculhar todos os escaninhos de sua própria (in)consciência.
Eis mais uma contrariedade, eis mais uma assimetria. Se surgir a partir dela alguma verdade: ponto para os realistas, se surgir alguma beleza, ponto para os românticos. Mas fiquemos tranquilos: o imperativo categórico, o grande minotauro, à espreita no interior do labirinto, está com os dias contados. Que lá vem Ariadne com um fio, e lá vem – Teseu!

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